Arquitetura
Crítica:
Como a Bauhaus russa foi morta
Ensaio de Camilla Gray que furou o boicote contra
a vanguarda de Moscou sai no Brasil
Antonio
Gonçalves Filho
Antes
da alemã Bauhaus existiu uma escola russa de arte, arquitetura
e design chamada Vkhutemas, que durou até 1927, mas o mundo
ocidental ignorou sua história. De 1932, quando Stalin proibiu
a arte abstrata e reprimiu a vanguarda na antiga União Soviética,
até 1962, ano em que surgiu o primeiro livro sobre ela, o Ocidente
boicotou a instituição soviética antecessora da
Bauhaus. Essa é a tese do arquiteto paulista Pitanga do Amparo,
que acaba de abrir uma editora, a Worldwhitewall, justamente para publicar
obras sobre o período. Sua tese, inclusive. O primeiro livro
da editora é um fundamental estudo da vanguarda russa do começo
do século passado, The Russian Experiment in Art (1863-1922),
escrito pela historiadora de arte Camilla Gray e publicado em 1962.
Traduzido pelo próprio editor como O Grande Experimento
- Arte Russa 1863-1922, o livro de Camilla é o início de uma
série que pretende explicar a grande revolução
estética conhecida por construtivismo russo.
A
recém-criada editora Worldwhitewall lança esse primeiro
livro no dia 11, na Casa do Saber, em São Paulo. Considerado
um ensaio clássico sobre a pré-história do modernismo
russo, o livro de Camilla Gray cobre desde o estabelecimento do primeiro
grupo de artistas vanguardistas, reunidos em 1870 pelo magnata das
estradas de ferro Savva Mamontov, até 1922. Nesse ano, artistas
revolucionários como Lissitzky - atentos ao blo-
AUTORA
TRABALHOU EM BIBLIOTECA PARA PAGAR AS PESQUISAS SOBRE OS MODERNOS
queio
econômico imposto pelos aliados - cruzaram a fronteira
e passaram para o lado alemão, ajudando a propagar os ideais
construtivistas. Lissitzky, a exemplo de companheiros russos (como
Kandinski), juntou-se às almas gêmeas que fizeram da Bauhaus
referência maior da arte e arquitetura modernas.
Sobre a alemã Bauhaus o arquiteto e agora editor Pitanga do
Amparo encontrou pelo menos 400 diferentes títulos durante o
período de pesquisas
para sua tese de doutoramento, O Grande Boicote Ocidental,
defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em janeiro
deste ano.
Sobre a escola Vkhutemas, nenhum livro. "Não há dúvida
que esse boicote existiu, desde que Stalin decretou seu fechamento,
praticando um genocídio artístico; primeiro, por parte
dos grupos do poder capitalista, que não tinham interesse
em divulgar nada comunista e, por último, de intelectuais
e editores ocidentais comunistas, numa embaraçosa conivência
com o regime político stalinista da União Soviética." Hitler,
lembra o arquiteto, também mandou fechar a Bauhaus, repetindo
o gesto de Stalin e restaurando - a exemplo do russo - o reinado
da arte realista acadêmica. Como se vê, cesarismo e
tirania nunca combinaram com modernidade.
A Vkhutemas de Moscou, instituição dividida em sete departamentos
(entre eles arquitetura), foi definida por Naum Gabo como uma experiência
revolucionária. Espécie de escola livre em que Malevich,
Tatlin, Kandinski, Gabo e Pevsner mantinham os próprios
estúdios,
ela formou o embrião do construtivismo, movimento que associou
evolução artística a desenvolvimento social
na antiga União Soviética. Todos os professores, óbvio,
eram de esquerda e seguiam orientações do Instituto
de Cultura Artística (lnkhuk), inicialmente dominado por
um programa do pintor Kandinski que contemplou, entre outras descobertas,
o suprematismo
de Malevich - antes das desavenças do primeiro com os construtivistas
e de sua insatisfação com a vida intelectual de Moscou.
Malevich, de mãe analfabeta e pai capataz (de uma fábrica
de açúcar), apenas tolerava colegas como Chagall,
que acabou expulsando da Vkhutemas, acusando-o de retromania.
O único livro integralmente dedicado à Vkhuternas foi
escrito pelo historiador Selim Khan-Magomedov e publicado na França
apenas em 1987. "Isso 60 anos depois do desaparecimento da
escola",
observa Pitanga do Amparo, mostrando como designers da Bauhaus
apropriaram-se das idéias dos pioneiros construtivistas
russos. A cobiçada
cadeira Wassily (ou "B3"), projetada pelo húngaro
Marcel Breuer em 1925/6, é por
demais parecida com outra desenhada no mesmo ano na Vkhutemas para
ignorar essa "influência", conclui o arquiteto.
A diferença é que
uma Wassily original custa, hoje, entre US$ 35 mil e US$ 45 mil.
A da escola russa nem os museus conservaram.
Aliás, é uma das razões pelas quais a arte construtivista
russa é tão pouco conhecida no Ocidente. Não bastasse
a guerra fria, que boicotou a arte dos pioneiros abstratos, os museus
da Rússia não sabiam o que era marketing e deixaram de
mostrar o que a vanguarda russa produziu em 30 anos de experimentação,
antes de Stalin decretar que a arte deveria atender, de 1932 em diante,
pelo nome de realismo socialista.
O
livro de Camilla Gray dá rápidas pinceladas no panorama
político do período. Ela tinha apenas 21 anos em 1957,
quando começou a pesquisar a arte dos pioneiros da vanguarda
russa e 26 quando publicou o livro, agora traduzido no Brasil. Suas
relações com a arte do período restringiram-se
a visitas aos sobreviventes artistas russos que viviam em Paris ou
passagens pelo Museu de Arte Moderna de Nova York. A boa vontade da
pesquisadora comoveu críticos como Herbert Read, Kenneth Clark
e, em especial, Alfred H. Barr, que visitou a União Soviética
nos anos 20 e conheceu a maior parte dos artistas que davam aulas na
Vkhutemas. Todos ajudaram Camilla, que sustentou sua pesquisa trabalhando
na Biblioteca Pública de Nova York.
Até por afinidade eletiva, seu livro dedica mais espaço à romântica
parceria de pintores como Natalia Goncharova, descendente de nobres,
com Mikhail Larionov, filho de militar, líder e organizador
de pequenas exposições que definiram o perfil da vanguarda
russa entre 1907 e 1913. A dupla filtrou as idéias progressistas
que circulavam pela Europa e Rússia até a Primeira Guerra,
além de ter desenhado cenários para os balés de
Diaghilev, que revelou Stravinski e Nijinsky. Foram os curadores das
primeiras exposições de Malevich e Tatlin, os dois principais
nomes do construtivismo russo. Não é preciso dizer
mais
Editora
vai publicar mais títulos
sobre construtivistas
A Worldwhitewall tem outros livros em preparo
sobre período
fundamental da história da arte
A
arquitetura russa da época do construtivismo conseguiu
sobreviver a Stalin, mas os prédios projetados por nomes
como Melnikov e Golossov nunca foram devidamente valorizados
pelas autoridades, sofrendo
o desprezo da história. O cidadão médio russo,
quando muito, conhece o mausoléu de Lenin desenhado por
Shchusev na Praça Vermelha, em 1924. O estrangeiro, também.
Com o advento da editora do arquiteto Pitanga do Amparo, essa história
vai sendo aos poucos recuperada em livros. No primeiro semestre
do próximo ano serão lançados dois títulos
sobre o assunto, Arquitetura Construtivista 1917-1936,
do italiano Vittorio De Feo, e Edificação
na União Soviética, do russo Oleg Shvidkovski.
O livro de Vittorio De Feo mostra como a arquitetura russa era criativa
e sintonizada com a modernidade antes de Stalin, conseguindo ser
mais radical que a dos alemães da Bauhaus. Contudo, devido às
dificuldades econômicas da União Soviética
nos primeiros anos, poucas edifi-
VISIONÁRIO-
Clube projetado pelo arquiteto Melnikov em 1927/8
cações deram conta de traduzir a imaginação
dos arquitetos russos e a influência do funcionalismo. Ainda
assim, estrangeiros como Le Corbusier deixaram sua marca em Moscou
(é dele o Centrosoyuz, de 1929).
"Tudo o que eu aprendi sobre a Bauhaus vi com muito mais
pertinência
nas andanças pela Rússia", diz o editor da Worldwhitewall. "Houve
uma apropriação indébita, uma diluição
da Gestaltung construtivista russa no Ocidente", conclui Pitanga
do Amparo.
A.G.F.