A longa marcha dos construtivistas
russos
Uma aventura editorial em torno de um enigma histórico
Jean-Pierre
Cousin para L'Architecture d'Aujourd'hui n° 367
Nov-Dez 2006
Uma
série de cinco obras sobre a arte e a arquitetura da época
da Revolução Russa têm previsão de publicação
pela editora Worldwhitewall de São Paulo (Brasil). Três
dentre elas são traduções em português
de livros originais em inglês ou em italiano: o livro de Camilla
Gray ¹, na sua versão original de 1962, seguida da
obra de Vittorio De Feo sobre a arquitetura na URSS de 1917-1932 ².
Essa aqui foi, em 1963, a primeira publicada sobre o tema, fora
das publicações fragmentárias na imprensa artística
e arquitetônica russa (da época heróica) ou ocidental.
Uma suma monográfica sobre os arquitetos construtivistas,
editado sob a direção de Oleg Shvidkovsky ³,
igualmente traduzido do inglês, tem previsão de publicação,
assim como a tese de doutorado sobre o construtivismo, defendida
pelo pesquisador e arquiteto brasileiro Luiz Antonio Pitanga do Amparo,
encarregado das três reedições. Uma outra obra
está em projeto para completar esse corpus único sobre
esse período.
Questionando-se sobre a herança dos construtivistas, Luiz
Antonio Pitanga do Amparo a duras penas não encontrou
mais do que uma dezena de obras, bem pouco em comparação às
quatrocentas disponíveis sobre a Bauhaus. Dessa constatação
banal surgiu uma tese de doutorado, cujo tema central é: "O
Grande Boicote Ocidental". Ao se identificarem as contribuições
dos russos para o restante da Europa se colocam outras questões:
porque os ocidentais menosprezaram ou calaram essas constribuições?
O sufocamento das idéias da época heróica
pela sociedade estalinista é suficiente para qualificar
esse período
como fracasso? Devemos considerar que o espírito e o significado
dessas idéias foram extintos?
Com o surgimento nos anos de 1990 de um movimento "deconstrutivista" encarnado
pelos arquitetos Eisenman, Libeskind, Zaha Hadid, etc., a idéia
emergiu de uma estreita relação entre os dois movimentos,
o que não contribui para dissipar a ignorância envolvendo
os construtivistas russos.
Dentro
dos construtivistas russos são englobados geralmente,
além daqueles que assim se declaram, os urbanistas, e seus
contemporâneos da vanguarda, trabalhando especialmente em pintura
(suprematistas), artes cênicas, design. Nesse reagrupamento
heterogêneo, suas diferenças ideológicas são
minimizadas, e pelo mesmo fato, a parcela de utopia social em marcha
passou por perdas e ganhos. Mas para compreender qual foi a contribuição
universal dos construtivistas russos, uma premissa indispensável é sua
relação profunda e contraditória com o seu substrato
social na Rússia. A inexistência de documentos em português
conduziu de início o pesquisador brasileiro a se interessar
pelo que lhe poderia fornecer elementos.
Fabricar
a história?
Muito distante para que os testemunhos de primeira mão sejam
acessíveis, muito recente pelos seus aspectos polêmicos,
a história da revolução de Outubro na Rússia
e do período heróico que se seguiu, chamado também "período
de transição, 1920-1930", ainda precisa ser contada.
Isso é principalmente verdadeiro para a arquitetura e menos
no que concerne às artes plásticas, um pouco mais conhecidas,
os artistas tendo emigrado e várias coleções
sendo montadas no Ocidente. Escrever a história, é também
descrever a transformação dos seus atores e de suas
idéias. Preencher essas lacunas deveria ser a tarefa dos próprios
russos, Vittorio De Feo expressou essa promessa em 1963, parcialmente
cumprida desde então.
Retornando de uma viagem oficial de arquitetos franceses à Rússia
em 1956, o arquiteto Anatole Kopp vê La Nouvelle Critique, órgão
intelectual do PCF, censurar um artigo que coloca algumas questões
sobre a arquitetura estalinista. Diante da recusa de Anatole Kopp
de obedecer, o artigo não será publicado. Na sua imponente
Histoire de l'architecture moderne publicada em 1960, Leonardo Benevolo
tinha dedicado à arquitetura russa menos de cinco páginas,
onde ele seguia a história oficial da URSS, evocando as dificuldades
do "período intermediário" (1920-1930), segundo
expressão consagrada, mas sobretudo o retorno ao neoclássico
exaltado por Kamenev, o encarregado da cultura de Stalin, com algumas
ilustrações (como o metro de Moscou). Será preciso
aguardar até 1976, após a publicação
de um certo número de obras sobre o construtivismo, notadamente
por parte dos soviéticos, para que Benevolo modifique a tonalidade
do capítulo e acrescente uma dezena de páginas. O que é finalmente
muito mais do que a maioria dos historiadores ocidentais tinham julgado
bom de escrever ao longo do meio século anterior, mas não
o bastante para fazer uma obra de historiador.
Nesse interregno, dois autores tinham rompido o silêncio: a
inglesa Camilla Gray, com a sua história mundial das belas-artes
na Rússia de 1863-1922, publicada em Londres em 1962, e o
arquiteto italiano Vittorio De Feo, com sua obra sobre a arquitetura
na URSS de 1917 a 1936, publicada em Roma em 1963. Todos dois historiadores
eram amadores, não universitários, e haviam criado
obras aparentemente independentes das correntes dominantes, numa época
em que isso não era favorável, nem na Europa ocidental,
nem na União Soviética, apesar da desestalinização.
Dançarina por profissão e intérprete de russo,
Camilla Gray casaria com Oleg Prokofiev, o filho do compositor. Ela
tem 26 anos quando publica seu livro em Londres em 1962. No ano da
reedição da obra, em 1971, ela morre na URSS de uma
hepatite mal tratada. Nas edições seguintes, os textos
dos protagonistas do movimento russo que a autora tinha colocado
em anexo na primeira edição, infelizmente, foram suprimidos.
Apesar de tudo, sem essa contribuição, manifestações
tais como a exposição Paris-Moscou 1900-1930, realizada
no Centro Pompidou por Pontus Hulten em 1991, não teriam
podido ver a luz.
Vittorio
De Feo, arquiteto italiano estabelecido em Roma, publica em
1963 a primeira grande compilação da arquitetura
construtivista. Essa obra é realizada a partir de arquivos
de revistas, sem que ele nunca se desloque para a URSS. Daí a
péssima qualidade de sua iconografia, o que parece envolvê-la
em mistério. A obra é por si mesma um enigma. Por que
razão De Feo se lançou nesta compilação,
de uma dificuldade extrema, aparentemente sem sequer dispor de fontes
de primeira mão? As edições Editori Riuniti
o publicam; elas são próximas do partido comunista
italiano que prega nessa época uma certa autonomia vis-a-vis
de Moscou com a tese do "policentrismo" ( um primeiro passo
do PCI em direção ao eurocomunismo). O livro não
poderia ter sido publicado sem o consentimento explícito das
instâncias dirigentes do PCI. De Feo tenha tido ou não
os contatos suscetíveis de lhe trazer as informações
complentares, e quais, a resposta está nesses arquivos atualmente
inacessíveis, se tornando o objeto de uma doação
em sua morte. A obra desapareceu dos catálogos do editor,
sua existência mesma poderia ser posta em dúvida se
não tivesse sido citada como referência nas obras
de Anatole Kopp e dos historiadores russos Oleg A. Shvidkovsky
e Selim
Khan-Magomedov 4 que publicam
sobre o assunto alguns anos mais tarde. É graças
a essa referência que a obra é redescoberta na biblioteca
da faculdade de arquitetura da USP por L. A. Pitanga do Amparo após
a morte de De Feo em 2002. Calcule o caminho percorrido para se chegar à publicação
de Ville et Révolution 5,
por Anatole Kopp nas edições
Anthropos com o apoio da associação França-Rússia
em 1967. Ele será seguido por Vieri Quilici 6 na
Itália
(1969).
Tudo que é publicado sobre esse período e suas origens
não vai na mesma direção. A exposição
sobre arte russa na virada do século (A Arte russa na
segunda metade do século XIX: Pesquisa de identidade,
no museu d'Orsay, 20 de setembro de 2005 - 8 de janeiro de 2006) é acompanhada
de um importante trabalho coletivo sobre esse período 7.
A documentação é centrada em um período
parcialmente abordado por Camilla Gray (que se inicia em 1863),
dentro de uma ótica que se poderia qualificar de nacionalista.
Ela valoriza na arquitetura um historicismo presente apenas em
determinadas
realizações do Art Nouveau. Esse período
forneceu as referências para a criação dos
estilos "nacionais" na
arquitetura estalinista, o discurso oficial se apoia sobre os
avanços técnicos e estéticos desse
tempo pré-guerra. Segundo Anatole Kopp, essas referências
são pelo contrário desprovidas de originalidade
e de interesse técnico 8.
Dissolução
de uma vanguarda
Geralmente qualificamos como sendo de vanguarda um movimento
minoritário
sem uma autêntica base social. Entretanto a vanguarda russa
se achava muito próxima do poder. O vazio deixado pelos intelectuais
emigrados em massa, ou por aqueles que ficaram, descartados sem consideração
(como foi Chagall da direção da escola de Vitebsky)
deixa o campo livre. A isso se junta o apoio de Lunacharsky, intelectual
esclarecido, responsável pela cultura, que se beneficia da
confiança de Lenin. Essas circunstâncias foram determinantes
no desenvolvimento do ensino e da pesquisa com os institutos
conhecidos sob o nome de Vkhutemas 9,
que se constituem até hoje
como fontes inexploradas.
Em menos de quinze anos, o volume produzido é largamente comparável àquele
do modernismo do oeste da Europa em arquitetura, sem falar do
ensino 9. A experiência construtivista é única por seu
impacto geográfico e seu aspecto qualitativo. Entre prospecção
e pedagogia, basta compararmos os desenhos de arquitetura de Tchernikhov
(dos quais ele não cessará aparentemente de produzir
os cadernos até 1936) àqueles de Eric Mendelsohn, para
apreciarmos a dimensão da reflexão construtivista
e sua ancoragem no universo social.
Conhecemos a sequência da história. Charles Bettelheim,
em seu prefácio no livro de Anatole Kopp, descreve a reação
da arquitetura estalinista como um aspecto da consolidação
de uma burguesia de estado recém-chegada ao poder, que se
beneficia de uma forte abertura de um leque de salários, se
acomodando graças a essas aquisições nas soluções
individuais para os problemas do modo de vida. Ela tinha razões
para querer o desaparecimento da época anterior e temia as
experiências que sustentavam a inovação arquitetônica
dos anos vinte e trinta. A extinção da arquitetura
construtivista não se fez de um dia para o outro. A ambição
de mudar o modo de vida e a sociedade tinha sido inicialmente eliminada
por volta de 1930. A fusão das organizações
de arquitetos e seu alinhamento se escalonou até 1937. Os
arquitetos construtivistas não parecem ter sido incomodados,
além da medida pelo regime estalinista na qualidade de pessoas
físicas, para além da fusão de seus conselhos
em organismos de grande porte. É esta impunidade dos arquitetos
sob o regime que fará deles bodes expiatórios no momento
da desestalinização conduzida por Krushov?
O
Ocidente boicotou as vanguardas russas?
A anterioridade histórica das vanguardas russas sobre os outros
movimentos modernos foi sistematicamente ignorada ou minorada pelos
historiadores do século XX, com o eurocentrismo vindo acompanhado,
dependendo da ocasião, de xenofobia ou antibolchevismo (Camilla
Gray será acusada de ser uma simpatizante comunista). Três
exemplos valem a pena serem citados. O primeiro, nas artes plásticas, é o
das relações comprovadas dos suprematistas e do grupo
De Stijl. A influência determinante dos russos sobre o coletivo
holandês é geralmente esvaziada. Ainda que a Bauhaus
tenha sido fundada por um arquiteto, Walter Gropius, em 1919, é somente
em 1927 que lá são introduzidos os estudos de arquitetura
por Ernest May e Hannes Meyer, que se torna o seu diretor. Eles retornam
da URSS onde tinham participado da experiência construtivista
em sua dimensão social. O "esquerdista" Hannes Meyer
(ver AA n° 366) é rapidamente excluído, o novo
diretor da Bauhaus, Mies Van der Rohe, começa por esvaziar
o ensino de arquitetura de seus conteúdos políticos.
Ele reduzirá os outros ensinos em benefício só da
arquitetura, com um enfoque estetizante, o que não salvará a
Bauhaus do seu fechamento definitivo pelos nazistas.
Reencontramos Le Corbusier: ele chega tarde na URSS, entre 1928
e 1932, o período de transição atinge seu
fim, ele não terá compreendido nada da sociedade
russa, nem dos seus conflitos internos, a qual não valoriza
o sentido formal na arquitetura. Ele negligenciará também
a reflexão
dos russos sobre a cidade, suas análises quantitativas
em urbanismo, sobre os transportes e as densidades que antecipam
as utopias dos
anos de 1970.
Por outro lado a emigração russa teve um papel difuso
na contribuição de suas idéias no Ocidente.
Gregori Warchavchik, teórico do modernismo no Brasil, seu
país de adoção, participou delas de maneira
não desprezível. Nascido em Odessa em 1896, que ele
abandonaria em 1918, Warchavchik ali se banhou nas premissas do modernismo
revolucionário russo. Ele termina seus estudos de arquitetura
em Roma em 1920 para chegar ao Brasil em 1923; ele publica ali seu
Manifesto da arquitetura moderna em 1925, cujo conteúdo,
como toda a sua arquitetura, carrega a marca do multiculturalismo.
Em
direção à uma
arqueologia do construtivismo
Para o pesquisador brasileiro, que teve a oportunidade de viajar
várias vezes para a Rússia, uma grande parte dos
arquivos, das obras e trabalhos da época não foram
destruídos pela guerra, nem pelas preocupações
da burocracia estalinista, mas postas em segurança pelos
restauradores, os bibliotecários, sabendo que tinham que
fingir serem inexistentes essa massa de documentos e arquivos,
em benefício das gerações posteriores. E ele
continua a recuperar e a trazer à luz esses documentos.
A dificuldade se avoluma com o tempo, a geração de
testemunhas intermediárias, ocidentais ou russos, como Camilla
Gray, Anatole Kopp ou Oleg Shvidkovsky, que tinham conhecido os
atores da época heróica não existem mais,
e com eles se foram os últimos testemunhos de primeira mão.
Somente eles teriam podido abordar a questão da memória
do construtivismo e da sobrevivência subterrânea das
idéias.
Desde os anos de 1970, o construtivismo retornou ao programa
de estudos de arquitetura na Rússia, ao lado dos outros períodos,
desencadeando polêmicas. No Ocidente, há uma constelação
de ícones arquitetônicos e gráficos onde os desenhos
de Tatlin se avizinham dos grafismos de El Lissitsky e algumas realizações
de Melnikov (um dos mais prolíficos), dos irmãos Vesnin
e de Moisei Ginzburg. A L'Architecture d'Aujourd'hui não deixou
de publicar uma reportagem de Bruce Chatwin sobre Konstantin Melnikov
e seu atelier de Moscou, a casa da rua Arbat (AA n° 293, abril
de 1994). O edifício ressurgiu do esquecimento ao longo do
verão de 2006 no imbroglio dos herdeiros do arquiteto com
um empreendedor russo. The Art Newspaper (26 de outubro de 2006)
citou dois projetos de reabilitação do Narkomfin de
Moisei Ginzburg, do qual uma proposta é de Aleksei Ginzburg,
arquiteto e neto do autor.
A conservação dos edifícios desse período
e a pesquisa histórica ressaltam no momento o difícil
campo da arqueologia e suas conjecturas.
Jean-Pierre Cousin
Notas
1.
Camilla Gray, The Great Experiment, Russian Art, 1863-1922,
Londres, 1962, edição revisada 1971. Reedições
1986-2000, sob o título The Russian Experiment
in Art, 1863-1922,
sob a direção de Marian Burleigh-Motley. Em francês: L'Avant-garde russe dans l'art moderne, L'Univers
de l'art, Thames
and Hudson, Paris 202. Reedição em português,
Worldwhitewall Editora, São Paulo 2005.
2. Vittorio De Feo, URSS architettura 1917-1936, Roma,
1963, Editori Riuniti. Em português, São Paulo, 2006,
Worldwhitewall Editora.
3. Oleg Alexandrovitch Shvidkovski, Building in the USSR 1917-1932,
Londres, 1970, Studio Vista. Publicação em andamento
em português, Worldwhitewall Editora.
4. Selim-O. Khan-Magomedov, Pioneers of Soviet Architecture,
Londres, 1978, Dresden (em alemão), 1983.
5. Anatole Kopp, Ville et Révolution, Paris, 1967, Anthropos.
6. Vieri Quilici, L'Architettura del Costruttivismo, Laterza,
Bari, 1969, Itália.
7. L'Art russe au tournant du siècle, Paris, 2005, RMN.
8. Anatole Kopp, L'Architecture de la période stalinienne,
préface de Charles Bettelheim, Presses universitaires
de Grenoble, ENSBA, 1985.
9. O Vkhutemas eram os institutos superiores de arte e técnicas.
Criado em 1920 no local da antiga fábrica Fabergé,
o Vkhutemas de Moscou contava dentre seus professores com Rodchenko
bem como Kandinsky e El Lissitzky, que ensinavam igualmente
na Bauhaus. Ler sobre o assunto: Les Vkhutemas, Selim
Khan-Magomedov, Éditions
du Regard, Paris 1990.