samba pós-exaltação
.....Pressão na barriga. É
o sinal! Subo rapidamente pela econômica escadinha circular
de 1,20 m de diâmetro. Apanho o telefone e o planeta diário.
Alcanço o vaso e finalmente relaxo a tranquila satisfação
de ter conseguido fazer tudo a tempo.
.....Mongol o débil mental,
Cuecão, Perry White, o ldiotinha e eu gargalhamos em uníssono.
A vida momentaneamente é um imenso refogado. Abobrinhas,
besteirol, risos frouxos, peidos idem... Será a harmonia?
.....Trrriiiimmmmm!!!!! Alô!
Sim é o Pitanga! Ouem é? Oh Wolf tudo bem? Cê
qué saber do artigo, né... Posso te ligar daqui a
cinco minutos? OK, até já...
.....E agora? Oito laudas para segunda-feira
e o tema é mais amplo que "0 Sentido da Vida".
.....Refeito do pânico inicial,
ligo e combinamos de almoçar juntos após algumas informações
sobre a importância do número em questão.
.....Fico de apanhar o Wolf em seu
habitat, no caso o centrão
.....A "boca do lixo" no
sábado, apesar da claridade do dia, tem um clima denso o
bastante para se pressentir a possibilidade de um assalto.
.....Tipos de cartoon underground pra
Lou Reed nenhum botar defeito. Fazendo a linha traficante, telefono
do orelhão para avisar que já cheguei e espero mais
um pouco enquanto escuto um duo de surdão e tamborim que
emana do boteco ao lado: Scuudum, Scundum, Taratata, Taratata...
Oi Pitanga! tudo bem? pode deixar o carro aí mesmo. (0 carro
tem seguro total; penso e me tranquilizo).
.....No caminho até a entrada
do prédio não resisto à dicotomia aparente
homem/meio ou seja Wolf-"boca do lixo" e concluo dizendo
que para conseguir morar naquela quebrada só sendo absolutamente
louco.
.....Desfeitas as impressões
iniciais, que poderiam pressupor uma perplexidade tipo yuppie apavorado,
descubro o jornalista-repórter, o raposa do deserto, que
precisa estar envolto no pulsar da megalópole.
.....Take a walk on the wild side...
.....0 vinho branco no espaço
acolhedor do apartamento convida à reflexão. A Festa.
A Bahia. A origem. 0 pelourinho. Uma entrevista com um jovem intelectual
baiano chamado Antonio Risério. Um disco de um tal de Caldas.
Uma reportagem com os moradores do pelourinho com uma batucada e
cantoria sempre presentes. Fala-se da proposta mal entendida do
Peter Cook de preservar só a fachada do pelourinho e os depoimentos
da população nos levam a crer que talvez exista algo
vital por detrás dessas fachadas que precisa ser traduzido
em linguagem de branco. E me ocorre que o urbanismo geralmente tende
a desprezar nuances antropológicas erradicando as esquinas,
os botecos, as quebradas, as manifestações mais espontâneas
e eu me vejo novamente andando na rua, na "boca do lixo"
em paz com a diversidade mas preocupado com o meu relógio
de ouro.
.....Me ocorre outra visão:
0 urbanismo é coisa de branco!
.....Como conciliar uma vida mais digna
com trabalho e oportunidade para todos com os requebros e manemolência
do neguinho boca-mole que insiste em exaltar as belezas naturais
e alertar para os perigos de uma vida sem quiabo nem giló?
.....Opinião dominante dos entrevistados:
0 tal do Bob Marley coisa e tal e graças ao Gilberto Gil
que nós fiquemo sabêno; mais eles num são importante
pra mim não e eu quero ver a alegria de um dia na vida da
esperança dessa mudança toda que é a esperança
da vida e dessa alegria toda da gente... Plim! Plim!
.....E com a palavra Antonio Risério
em tom profético discursivo glauberiano vai pontificando
aqui e ali o prenúncio de um ressurgimento de toda a catarse
místico-poética que teve início lá mesmo
na Bahia em que Gregório de Mattos Bezerra, Aureliano Neves
da Costa, o grande Nepomuceno Cavalcanti, e como deixar de citar
os prolegômenos de uma visão abrangente do negro do
pelourinho e do escravo que teve sua liberdade garantida por um
acordo de ingleses, mas isso fez José do Patrocínio
chorar e mesmo Glauber Rocha que resgatou a miséria de um
contexto específico e por que não lembrar da importância
de:
GILBERTO
GIL & CAETANO VELOSO
.....Aqqquuueeeeeellee AAbbrraaaaaaaaaaaçççooo
!!!!! .......
.....E voltando à civilização
dos anos 60, o Rio é então lembrado e cogita-se da
possibilidade de um ressurgimento desse pique.
.....Talvez ainda a coisa esteja ocorrendo
timidamente pois tem a cara do regime.
.....É porque o Rio àquela
época era o centro nervoso cultural, estético, político
e econômico do país e para onde convergia toda a inteligência
e de onde se podia irradiar com repercussões até internacionais
toda manifestação criativa. Veja a Bossa Nova, o Cinema
Novo, as artes plásticas e arquitetura em plena efervescência.
.....E a Bossa Nova foi o último
momento realmente criativo da música brasileira em que se
podiam detectar elementos eruditos da nossa música (Villa
Lobos entre outros) a harmonia jazzística e o ritmo da música
negra (a batucada na mão esquerda do piano do Jobim).
.....Com o golpe, silencia a música
e tem lugar a palavra ou poesia via Tropicalismo que se utiliza
do rock para dar o seu recado e nas mãos dos baianos deslumbrados
com o sul-maravilha vão se diluindo os valores de um momento
em que os músicos no mundo todo eram obrigados a nos imitar
se quisessem estar atualizados.
Já o caipirismo-oportunista-imitativo foi se "atualizando"
de: música de arrasta-peixe, pra Jovem Guarda, pra rock de
bandolim elétrico, pra minimalismo intimista tipo "Um
coco na areia, dois coco no quintal", pra reggae "Mim
qué tocá".
.....E o espetáculo mais deprimente
que reflete o atual subdesenvolvimento estético fica por
conta da entrevista Mick Jagger/Caetanim na qual, enquanto o Mick
Jagger dizia: nós, você e eu, somos talvez etc. e tal;
o outro se revelava idólatra, assumindo uma inferioridade
terceiro-mundista típica de mentalidade regionalista, bairrista,
competitiva de nível futebolístico.
.....Absolutamente diverso para quem
se lembra, há muitos anos atrás, foi o encontro dos
deuses Jobim e Sinatra o que por si explica tudo.
.....E com um desfecho místico,
na tentativa de exorcizar as mentiras teórico-exaltativas
perpetradas pelos puxa-saco e diluidores de plantão, aí
vai um sambinha, ou melhor um partido alto, bem alto, talvez com
uma bandeirola no topo e que pode também ser levado em ritmo
de rock na versão para guitarra elétrica de Frank
Guery and his Space Makers ou de blues no estilo Memphis.
Pitanga do Amparo, arquiteto pela FAUUSP,
1973, é professor de Projeto na Mackenzie
10/05/1986